Félix Von Luckner, o Último Corsário Romântico dos Tempos Modernos

Texto de Luis Filipe Morazzo

A pirataria nos mares é praticada desde a antiguidade. Os Piratas, versão marítima dos saqueadores que atacam caravanas comerciais desde que os povos negoceiam entre si, existem desde que existe o comércio marítimo. Os mais antigos registos vêm dos gregos. Em 730 a.C., eles já pilhavam navios fenícios e assírios, segundo relato de Homero, na Odisseia, embora tenha sido a partir do século IX que adquiriu enormes proporções, tendo atingido a sua Época de Ouro entre os séculos XV e XVIII. Os piratas actuavam à margem da lei, muitas vezes atacando navios do seu próprio país.
A partir do século XIV os piratas muçulmanos, sediados em Tripoli (Líbia), Argélia, Gibraltar, Ceuta e Salé (Marrocos), e também no antigo Reino de Granada (Espanha), iniciam continuas expedições de saque aos reinos cristãos.

Portugal, um dos países mais atingidos por essa pirataria, especialmente a partir do século XVI, iniciou nesta altura periódicas acções punitivas no Norte de África as quais se prolongaram até 1807. Os piratas muçulmanos saqueavam tudo o que encontravam (navios, cidades, etc.), reduzindo as populações à escravatura e obtendo também enormes lucros com o regaste de prisioneiros cristãos. Calcula-se que entre 1500 e 1800 mais de um milhão de cristãos tenham sido mortos ou escravizados por piratas e corsários muçulmanos. A carnificina foi total. Muitos países como a Inglaterra, Suécia ou mesmo os EUA (depois de 1776), pagavam aos chefes muçulmanos do Norte de África para evitar que os seus navios fossem atacados. Apenas na segunda metade do século XIX foi possível acabar com a pirataria no Mediterrâneo e no Atlântico.

O Corso, isto é, a pirataria autorizada por um Estado, atingiu o apogeu nos séculos XVI e XVII. Foi até ao século XIX uma forma de os estados possuírem uma "marinha de guerra" sem custos, concedendo o direito a particulares de se apossarem dos navios e saquearem as povoações dos seus inimigos. O Corso, desde o século XIV, esteve regulamentado em muitos reinos europeus, inclusive Portugal. Para dar um ar oficial, eles usavam a Carta do Corso, documento que autorizava um capitão e a sua tripulação para perseguir e atacar qualquer embarcação que levasse a bandeira de um país inimigo. O saque deixava de ser crime, tornando-se uma actividade legal e tributável - desde que fosse contra os adversários.

Finalmente o Bucaneiro, também é uma designação utilizada para o tipo de actividade da pirataria. É a forma como eram chamados os piratas franceses que aportaram na região da ilha de Hispaniola, actual Haiti e Republica Dominicana, por volta de 1600. O nome vem do termo francês "bucan", que designava a grelha com a qual defumavam carne. Esses piratas logo se apossaram da então colónia espanhola e criaram as suas próprias regras, sem obedecer a ninguém - o que acabou atraindo gente de todo tipo para a região, incluindo ex-presidiários, escravos fugitivos e perseguidos da Inquisição Católica. Os bucaneiros foram expulsos em 1620, quando a Espanha resolveu dar um "basta" ao que já se estava transformando numa verdadeira terra de ninguém. Os piratas franceses escolheram então a ilha de Tortuga como novo destino, onde continuaram a praticar a pirataria, tendo as embarcações espanholas como alvo predilecto. Toda a região das Antilhas ficou famosa pela violência bucaneira.

Hoje vamos contar a história do comandante alemão Félix Von Luckner, o homem que na primeira guerra mundial, afundou 19 navios aliados sem nunca ter vertido sangue. Este corsário dos tempos modernos que nunca se viu forçado a matar para obrigar à rendição as tripulações dos navios que atacava, é um caso extraordinário que merece ser contado. Nasceu em Dresden, na Alemanha, em 1881. Logo muito cedo o seu espírito aventureiro o chamou para o mar. Foi assim com catorze anos que o vamos encontrar sob um nome de empréstimo, matriculado como grumete a bordo de um barco russo, onde lhe faziam a vida dura. Pouco depois da passagem do Equador e do tradicional baptismo da "linha", o jovem grumete caiu à água, foi pescado quando se julgava perdido e, momentaneamente desgostoso com a vida do mar, desertou na Austrália.



Em breve porém se esqueceu da aborrecida experiência e tornou a embarcar. Desta vez no "Pinmare", uma barca inglesa de quatro mastros que, com mantimentos para 120 dias, levou 288 de Liverpool a São Francisco. Resultado: uma viagem tormentosa, durante a qual a tripulação esteve prestes a morrer de fome e sede.

No entanto, aquilo ainda não era suficiente para desanimar Félix Von Luckner. Ao sair do hospital onde fora internado, matriculou-se finalmente num navio de nacionalidade alemã, o "Caesarea", e julgou terminadas as suas desventuras.

Enganava-se! O navio foi apanhado por uma tremenda tempestade. Muitos dos homens da tripulação morreram. O próprio Félix ficou com uma perna partida. Foi o capitão quem o tratou, com os poucos meios de que a bordo podia dispor.

Finalmente, aos vinte anos, Félix Von Luckner decidiu desembarcar para fazer o seu curso de piloto. Depois de aprovado no exame final, alistou-se como voluntário na marinha de guerra. Foi então que foi visitar a família que o julgava morto há já longo tempo, sendo recebido com a alegria que se calcula. Mais tarde é promovido a capitão; Agosto de 1914, a primeira guerra mundial encontra-o a bordo do "Panther", navio da armada alemã.

Foi então que começou a sua incrível carreira de corsário. Tendo sabido da experiência de Von Luckner em navios à vela, o Estado-maior Alemão pediu-lhe que tomasse o comando de um veleiro transformado em cruzador auxiliar para forçar o bloqueio inglês. Deram-lhe o "Pass of Balmaha"um bom veleiro inglês de três mastros, capturado no início da guerra, com um deslocamento de 1600 toneladas, um comprimento fora a fora de 84m, podendo chegar aos 10 nós com alguma facilidade. Dotaram o navio com um motor auxiliar de 900hp e camuflaram-no como um três mastros norueguês, idêntico a um outro dessa nacionalidade que, de facto existia: O "Maletta"
Tudo o que fosse alemão tinha sido cuidadosamente escondido. A tripulação fora escolhida a dedo entre especialistas de vela, muitos falavam fluentemente várias línguas como o holandês, norueguês, inglês etc. Havia armas e munições ocultas nos sítios mais inesperados. O armário das vassouras escondia metralhadoras. "Seeadler" era o novo nome do navio, que a mais minuciosa inspecção não deixaria de tomar por uma unidade da marinha mercante norueguesa.

A 21 de Dezembro de 1916, o "Seeadler" fez-se ao mar. A 25 do mesmo mês o homem que estava de vigia, anunciava que um navio se aproximava pela popa a grande velocidade. Tratava-se do cruzador auxiliar inglês "Avenger" que, de imediato, mandou parar o veleiro para de seguida enviar uma força de inspecção a bordo. Quando os ingleses subiram a bordo do "Seeadler", encontraram vários marinheiros com cabeleiras loiras e envergando trajos femininos, estendidos em cadeiras de lona, bem á vista no convés.
Como pensar que a bordo de um navio onde viajavam mulheres pudesse haver intenções suspeitas?

Von Luckner em pessoa acompanhou o comandante da força inglesa na visita de inspecção. No final despediram-se cordialmente, com desejos mútuos de um Feliz Natal e boas singraduras.



E assim Von Luckner forçou o bloqueio, e estava pronto para a tarefa que lhe fora designada: atacar a navegação aliada. A sua primeira vítima seria o vapor inglês, o "Gladis Royle", de 3,268 toneladas, afundado perto de Gibraltar, a 9 de Janeiro de 1917. Toda a sua tripulação, de 26 homens, foi recolhida sã e salva a bordo do "Seeadler". No dia seguinte foi a vez de outro vapor da mesma nacionalidade, o "Lundy Island"ser afundado, com um deslocamento de 3,095 tons, para de seguida ter o mesmo fim a barca francesa "Charles Gounod", de 2,199 toneladas. De todas as vezes as tripulações foram previamente recolhidas pelo atacante.

Em oito semanas, Luckner afundará mais 40000 toneladas de carga e fará mais de 263 prisioneiros, como resultado dos afundamentos em série da escuna canadiana "Perch" a 24-1-17, da barca francesa de 4 mastros "Antonin" de 3070 tons., a 3-2-17, do veleiro italiano "Buenos Aires" de 1811 tons., a 9-2-17, da barca inglesa "Pinmore", de 2,431 tons, a 19-2-17, da barca canadiana "British Yeoman," de 1,953 tons., a 26-2-17, da barca francesa "La Rochefoucauld", de 2,200 tons, a 27-2-17, da barca "Dupleix" de 2.206 tons da mesma nacionalidade que a anterior, a 5 -3-17 e do vapor inglês "Horngarth", com um deslocamento 3,609 tons., afundado a 11 de Março de 1917. Todos estes afundamentos tiveram lugar no Atlântico central na zona inter-tropical. Surgiu no entanto um problema que se foi agravando, sempre que se dava um novo afundamento. Como alimentar todas aquelas bocas? Von Luckner resolveu-o facilmente. Tendo capturado a barca francesa "Cambrone" de 1830 tons., a 21-03-17, fez transportar todos os prisioneiros para bordo desse navio, enviando-o em seguida para a Alemanha.

Depois, aliviado de todas daquelas bocas inúteis, Von Luckner faz rumo ao Pacífico a fim de fazer a aguada da qual estava urgentemente necessitado, cruza o famigerado Cabo Horn a 18-4-17. Com a intenção de encontrar uma ilha deserta, tira rumo a Mopelia no arquipélago da Sociedade, não sem antes ter afundado as escunas americanas "A. B. Johnson", de 529 tons, a 14 de Junho de 1917, a "R. C. Slade", de 673 tons, e a "Manila", de 731 tons. Mas finalmente chegou a hora em que a sua sorte mudaria. Estava fundeado ao largo de Mopelia, a 2 de Agosto de 1917, fazendo a aguada e dando o descanso merecido à sua tripulação, quando repentinamente uma violenta tempestade tropical o surpreendeu, inutilizando irremediavelmente o "Seeadler. Eis Von Luckner instalado na ilha com os seus homens, formando uma longínqua e ignorada colónia alemã.

Capturados e transportados para a Nova Zelândia, Von Luckner e os companheiros conheceram horas amargas. Por duas vezes o capitão-corsário tentaria a fuga. E por duas vezes seria capturado. A 11 de Novembro de 1918 chegava o Armistício, a vitória dos Aliados e o desabar da Alemanha. Luckner voltou ao seu país em Julho de 1919.
- Acabámos de descrever mais uma história de guerra como muitas outras, dirão.

Sim, uma história de guerra, como muitas. Mas o que houve de notável no caso do capitão Von Luckner, depois de ter conduzido o seu navio durante 224 dias, perfazendo mais de 30000 milhas através de dois oceanos e após ter destruído 19 navios inimigos com enorme mestria, foi a grande cortesia com que sempre fez a guerra.

Todos os seus antigos e inimigos proclamaram mais tarde:que Félix Von Luckner tinha sido um autêntico cavalheiro. Os capitães dos navios prisioneiros comiam à sua mesa, os seus homens recebiam o mesmo tratamento que a tripulação alemã do "Seeadler". Antes de os enviar para terra oferecia-lhes um jantar de despedida e não se esquecia de lhes entregar o soldo a que teriam direito se estivessem a bordo do seu próprio navio. E, finalmente, servindo-se do ataque de surpresa e dos seus grandes conhecimentos em tácticas navais, nunca fora forçado a matar para obrigar as suas presas a render-se.

Muitos daqueles que haviam sido seus adversários durante a guerra, reconheceram publicamente o perfeito cavalheirismo com que tinham sido tratados. Isto terá sido a melhor recompensa para o capitão Von Luckner, que foi alvo de várias manifestações públicas de homenagem ao longo da sua vida. Porém, houve uma em especial, aquela que em 1960 lhe foi prestada por todos os membros dum clube francês de vela.

Félix Von Luckner morreu em Malmo na Suécia, em 13-4-66, aos 85 anos, com honras de um verdadeiro herói de guerra alemão, prestadas com orgulho pelo seu povo, mas incrivelmente por alguns dos seus antigos inimigos, também.

Fonte: www.revistademarinha.com/ (20/02/2010)

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