Somália, 2010: Os piratas estão vencendo!



Jeffrey Gettleman, New York Review of Books, vol. 57, n. 15

Abshir Boyah é um dos capitães-piratas da Somália. Ano passado, convidou-me para almoçar num pequeno restaurante, na calçada em frente ao palácio do governo regional semiautônomo de Puntland. Boyah já sequestrou dúzias de navios e barcos e é membro de um conselho secreto de piratas chamado “A Corporação”. Tem quase dois metros de altura, muito magro, rosto longo e expressão simpática, dentes branquíssimos e sorriso de inabalável total autoconfiança.

No instante em que entrou no restaurante, foi cercado por admiradores. No caminho até a mesa de plástico, onde almoçaríamos espaguete com carne de camelo, Boyah apertou meia dúzia de mãos. Evidentemente mantém as mais cordiais relações com membros do alto “governo” em Puntland – autoridade clânica, limitada, que se estabeleceu no norte da Somália –, inclusive com um comandante da Polícia que se sentou ao lado dele e tratava-o por “primo”. Boyah riu da situação: para ele, sentar-se e almoçar com brancos, era como “o gato almoçar com os ratos”. A cada instante, mais me convencia de que não se tratava apenas de Boyah operar livremente naquela parte da Somália; ali, Boyah é celebridade.

Boyah e seus camaradas (muitos dos quais, em verdadeiro espírito pirata, são conhecidos pelos codinomes “Bocão”, “Bunda Branca”, “Bundinha”, “Dente de Prata”, “Dente Vemelho”, “Abdi, O Mentiroso”) são risonhos, simples, surpreendentemente acessíveis – algumas gangues de piratas somalianos têm, cada uma, seu porta-voz oficial pirata para contatos com a mídia. Dizem a quem pergunte que trabalham exclusivamente pelo dinheiro. Mas o efeito do florescente empreendimento criminoso que organizaram nas águas de mais densa e complexa circulação de navios do mundo teve efeito muito mais amplo do que o simples sucesso comercial.

Nada, nos últimos anos, conseguiu atrair mais atenção internacional diretamente para a Somália – nem a fome que mata milhões, nem a guerra civil sem trégua, nem o primeiro homem-bomba americano nativo, que se autodetonou na Somália ano passado –, que as histórias reais dos piratas do século 21 que, de seus barcos, jogam ganchos sobre a murada dos maiores navios que há no planeta, sobem a bordo pingando água e pesadamente armados e capturam tripulações inteiras, que mantêm como reféns durante meses, até que os milhões de dólares pagos para libertá-los caem sobre eles, literalmente, dos céus.

Ao longo dos últimos vinte anos, desde o colapso do governo central, a Somália é caso exemplar da história moderna, de país sem Estado. Nada parece funcionar ali como noutros lugares. Nem legiões de soldados norte-americanos desembarcados em 1992 com a missão de “conter” os senhores-da-guerra locais; os soldados retiraram-se dois anos depois, derrotados e humilhados, no fiasco narrado em livro (1999) e filme (2001), “Falcão Negro em Perigo” [ing. “Black Hawk Down”]. Nem os sete mil soldados dos batalhões de paz da União Africana que lutam hoje nas ruas em ruínas de Mogadishu. Centenas de milhares de vidas foram destruídas pela fome e pela guerra. E a violência não para de crescer, mais recentemente, no que é ostensivamente uma guerra religiosa entre um governo islâmico moderado que recebe milhões de dólares de ajuda do Ocidente, mas não tem controle sobre praticamente nenhum território, e uma guerrilha islâmica radical levada para a Somália pela al-Qaeda. Rivalidades seculares entre clãs e os que lucram com a guerra alimentam esse banho de sangue eterno. Nesse contexto, germinaram condições perfeitas para a pirataria: anarquia, a herança da Guerra Fria, que criou uma Somália armada até os dentes, e um litoral de mais de 3.000 km no Golfo de Aden, pelo qual cruzam anualmente 20 mil navios.

Claro que já houve outros estados fracos ou relativamente fracos com litorais estratégicos, como a Nigéria ou a Indonésia, onde a ausência de qualquer lei fez florescer a pirataria, e os piratas sempre utilizaram táticas semelhantes às que se veem na Somália – os ganchos para abordagem, os barcos rápidos e os chamados barcos-mãe. Mas a Somália é diferente, em pelo menos um aspecto crucialmente importante, o que também explica que personagens como Boyah deem-se tão bem.

Os piratas da Somália contam com um país inteiro, do tamanho do Texas, onde se escondem e escondem os reféns. Abordam e navios às vezes a dois mil quilômetros da costa; transferem os reféns para seus barcos rápidos e os levam para esconderijos só conhecidos dos piratas, onde jantam churrasco de bode recém-degolado e iniciam as negociações que levarão ao pagamento do resgate.

Para os reféns, pode ser espera longa, infernalmente difícil. Paul e Rachel Chandler, casal de aposentados britânicos, permaneceram numa vila a poucas milhas do litoral da Somália por quase um ano, depois que seu veleiro foi abordado em outubro de 2009, durante o que esperavam que viesse a ser “a viagem dos nossos sonhos”. Em 2008, quando mais de uma dúzia de navios foram sequestrados, e havia mais de 300 reféns, todos aprisionados em mar alto no litoral da Somália, Pottengal Mukundan, diretor do International Maritime Bureau em Londres, disse-me: “Veem-se imagens dos barcos no Google Earth. Nenhum outro Estado, no mundo, toleraria isso.”

Mais de 30 países já enviaram navios-patrulha armados, para águas da Somália, mas Mukundan não tem esperança de que consigam intimidar os piratas, porque são mais de seis milhões de quilômetros quadrados a patrulhar. Os estrangeiros resistem à ideia de atacar os refúgios dos piratas em terra, porque é muito mais simples e mais barato negociar com eles e pagar os resgates. Negociar com os piratas e pagar os resgates pode ser bom negócio e talvez faça sentido. Mas quando essa negociação se torna prática regular e frequente, ela acaba por atrair cada vez mais jovens somalianos, que veem na pirataria um excelente oportunidade de trabalho; ao mesmo tempo em que os piratas tornam-se cada vez mais ousados e mais ambiciosos.

Os piratas somalianos atacam qualquer tipo de embarcação: gigantescos navios-petroleiros, veleiros esportivos minúsculos com três pessoas a bordo; os tradicionais veleiros árabes dhows que transportam mercadorias; navios de transporte fretados para transporte de produtos de socorro, alimentos e remédios, ou para transporte de armas; um navio-tanque dos EUA carregado de benzeno altamente inflamável, que as autoridades dos EUA temeram que fosse usado como gigantesca bomba flutuante. Os piratas até já abordaram navios de guerra, supõe-se que por engano.

Ninguém sabe com precisão o quanto já arrecadaram em resgates recebidos nos últimos cinco anos, mas pode-se estimar o total em, no mínimo, 100 milhões de dólares. Vez ou outra o botim enlouquece os piratas. Depois de recolher o pacote com 3 milhões de dólares, que desceu de paraquedas sobre o convés do “Sirius Star” – resgate pago em troca da desocupação do superpetroleiro saudita, que um bando de jovens piratas somalianos sequestrou no final de 2008 –, os piratas saltaram para seus botes infláveis super rápidos, no meio de um vendaval em alto mar. Vários botes viraram e vários piratas afogaram-se. Um corpo veio dar ao litoral, dias depois, com mais de 150 mil dólares nos bolsos das calças e jaqueta.

Essas formidáveis quantias de dinheiro criaram uma cultura pirata cheia de extravagâncias. Os casamentos piratas são solenidades e negociações altamente elaboradas, que duram dois ou três dias, avançam noite adentro, com conjuntos musicais (e noivas) trazidos de outros países em comboios de moderníssimos veículos 4 x 4. As mais belas jovens nas vilas dos piratas sonham com noivo pirata; os meninos mal podem esperar crescer o suficiente para pendurar a metralhadora AK-47 ao ombro e partir para o mar. Nessas regiões, toda a economia local gira em torno do sequestro de navios, com centenas de homens, mulheres e crianças empregados como vigilantes, guardas, atendentes, cozinheiros, auxiliares de convés, mecânicos, contadores, guarda-livros e garçons para servir chá.



Não há dúvida de que, na Somália, o crime compensa. – De fato, é a única indústria na Somália que garante lucros aos investidores. Há uma Bolsa de Valores pirata que funciona em Xarardheere, na qual os cidadãos compram e vendem ações de 72 empresas piratas individuais, que rendem retorno considerável no caso de a empresa pirata ser bem sucedida. Mas, quase sempre, todos gastam todo o dinheiro sem qualquer controle.
Boyah, que já recebeu pessoalmente centenas de milhares, se não de milhões, de dólares, pediu-me que lhe comprasse cigarros, quando o encontrei. Perguntei-lhe se não tinha dinheiro nem para cigarros, e ele explicou: “Quando alguém que nunca viu dinheiro passa a receber pacotes de milhões, logo se aprende que assim como vêm, os milhões se vão, muito depressa.” Disse também que tem de manter uma rede muito grande de parentes e dependentes clânicos: “não é um milhão para dividir entre dois ou três. São trezentos, às vezes mais.”

Nos últimos dois anos, alguns países tentaram linha mais dura. Uma vez, não faz muito tempo, tripulações de navios mercantes enfrentaram os piratas com tomates e tentaram atacá-los com mangueiras. A marinha da Índia recentemente afundou um navio pirata, matando vários piratas e os reféns que estavam sendo transportados. No início de setembro, comandos da Marinha dos EUA conseguiram capturar nove piratas somalianos que haviam sequestrado um cargueiro alemão ao largo do Iêmen. Muitos navios mercantes já contratam segurança privada armada para viagens naquela área. Os piratas estão aprendendo que se vai tornando cada vez mais difícil sequestrar navios e, segundo informe recentemente distribuído pela ONU, a taxa de sucesso dos piratas despencou, de 63% de sequestros bem-sucedidos, para cerca de 20%. Dúzias de piratas têm sido capturados e levados para o Quênia, Paris, Amsterdã e até New York para serem julgados, embora número muito superior tenha sido detido, desarmado e devolvido ao mar. Ano passado, SEALS da Marinha dos EUA, mataram três piratas que mantinham como refém um norte-americano num bote salva-vida. Mas os sequestros prosseguem. Até meados de agosto de 2010, piratas somalianos haviam abordado, no ano, 31 navios – muito menos do que no ano passado.

O “Chifre da África”, aquela ‘ponta’ do continente africano que avança no Oceano Índico e quase toca a península Arábica, é uma das regiões menos democráticas, onde mais a fome faz vítimas, mais miseráveis e mais violentas do mundo – como se vê há 30anos na Etiópia, Eritreia, Somália e Sudão.

Os EUA e a URSS definiram o Chifre como território de alta importância estratégica – o que o converteu em campo de batalha da Guerra Fria. Quantidades imensas de armas chegaram ininterruptamente àqueles países profundamente empobrecidos; e os ditadores do Chifre rapidamente perceberam que muito teriam a ganhar se não construíssem instituições e jamais pensassem em divulgar ideologias persuasivas e pacíficas. Os grandes ganhos só dependiam de manter contato íntimo ou com EUA ou com a URSS e exigir quantidades de armas cada vez maiores.

A Somália talvez seja o mais terrível exemplo de instabilidade social e política gerada pela Guerra Fria. Primeiro, a serviço dos russos, ali se instalou uma das principais bases de lançamento de mísseis teleguiados, em Berbera, junto ao Golfo de Aden. Visitei os bunkers quase todos subterrâneos, nos quais os russos armazenavam mísseis, e os estaleiros, hoje em ruínas, nos quais trabalhavam marinheiros russos. Naquele momento, os EUA apoiavam o arqui-inimigo da Somália, a Etiópia, então convertida em estado-cliente dos norte-americanos.

De repente, em meados dos anos 1970s, tudo mudou, quando um levante de oficiais do exército etíope assassinou o velho rei Haile Selassie, e o novo governo revolucionário optou por construir Estado comunista marxista. As duas superpotências ‘trocaram de campo’: os soviéticos abraçaram a Etiópia e os EUA mudaram-se para a Somália. O fluxo infindável de armas prosseguiu. Os ditadores locais, cada dia mais armados, foram-se tornando cada dia mais despóticos. Em 1991, quando se deu por oficialmente encerrada a Guerra Fria, os dois governos, da Somália e da Etiópia, desabaram, quase simultaneamente.

Siad Barre, ditador na Somália, já governava sem mandato legítimo há anos. Desde o início dos anos 1980, uma guerra civil entre clãs armados já vinha minando a autoridade do ditador; ao final da década, Barre já era conhecido como “o prefeito de Mogadishu”, porque as milícias já\ controlavam todo o resto do território.
Sempre foi difícil governar a Somália, apesar de ser um dos países mais culturalmente homogêneos do planeta. Praticamente todos os habitantes, estimados em sete milhões, falam o mesmo idioma (o somaliano), praticam a mesma religião (islamismo sunita) e são de um mesmo grupo étnico e cultural. Mas os somalianos são divididos em número muito grande de clãs e subclãs.

Italianos e britânicos colonizaram diferentes partes do território, e todos fracassaram na tentativa de impor leis ocidentais aos somalianos. Na Somália, por tradição, as disputas resolvem-se em assembleias em que se reúnem os mais velhos de cada clã. Para a expressiva maioria da população, só há uma lei que todos compreendem: “Se você me matar, a ira do meu clã cairá sobre você e o seu clã.” Nos pontos do país onde as práticas sociais tradicionais foram menos violentadas, como na Somalilândia britânica, os frutos de longo prazo foram melhores do que na região centro-sul do país, onde a administração colonial italiana rapidamente destruiu a estrutura tradicional das assembleias de anciãos. A região centro-sul da Somália ainda é palco de confrontos sangrentos, de radicalismo islâmico e pirataria. Na Somalilândia acabam de ocorrer eleições pacíficas e – fenômeno raro na África – a transferência de poder fez-se sem violência.

Em seu novo livro Somalia: The New Barbary?[1], Martin Murphy, conselheiro da Marinha dos EUA e professor visitante no Corbett Centre for Maritime Policy Studies no King’s College, University of London, usa documentos e registros do período colonial, para demonstrar que desde os anos 1950s há piratas no Golfo de Aden, que já então atacavam veleiros árabes tradicionais [dhows] e barcos pesqueiros. Antes disso, tudo leva a crer que os somalianos contentavam-se com explorar restos de navios naufragados.

Segundo Robert L. Hess, em seu livro Italian Colonialism in Somalia[2] os sultões do que se conhece hoje como Puntland dirigiam “bem organizada indústria de operações de saque” já nos anos 1800s, quando assaltavam os navios europeus que tentavam ultrapassar o traiçoeiro Cabo Guardafui, o chifre do Chifre da África.

A Somália é estado com extenso litoral, mas a maioria dos somalianos vive no interior, distantes do mar. Mesmo nos tempos de alguma estabilidade, a Somália jamais desenvolveu indústria pesqueira significativa, apesar de os mares somalianos serem ricos de atuns, tubarões, lagostas, camarões de águas profundas e pescada. A cultura tradicional da Somália é pastoril, com criação de cabras e camelos, feita segundo a tradição nômade, de rebanhos conduzidos pelo território, acompanhando o ciclo das pastagens. “Comedor de peixe” é expressão extremamente ofensiva entre os somalianos. Uma das cenas mais impressionantes do livro clássico de Gerald Hanley sobre a Somália, Warriors, publicado pela primeira vez em 1971, comenta as impressões de um jovem do interior que vê o mar pela primeira vez:
Quando Mohamed afinal desceu do caminhão, parou, paralisado, os pés colados ali na areia, tremendo dos pés à cabeça, olhando e ouvindo o rugido terrível do mar que rolava em direção a ele. Jamais vira nada semelhante e ficou sem fala. Até os askaris [soldados locais] calaram-se e ficaram a olhar para ele, que examinava tudo em volta, os olhos móveis, preocupados (...). Foi das experiências mais estranhas da minha vida: um selvagem do deserto tremendo ante o oceano que via pela primeira vez, como se temesse que o chão se abrisse e o engolisse para sempre. O homem um dia esteve como ele, entre raios e trovões, há um milhão de anos, no tempo da inocência.”[3]

Apesar de os somalianos não sentirem qualquer orgulho ou atração por seus mares, há quem os procure. No auge da temporada de pesca, a paisagem enche-se de traineiras e barcos pesqueiros de todo o planeta. Muitos usam técnicas predatórias, dinamitando recifes, ou gigantescas bombas de sucção que aspiram o fundo do oceano – peixes, corais, rochas, plantas – e destroem não uma, mas várias gerações de vida marinha.

Muitos dos piratas que entrevistei falam do sentimento de humilhação, quando não havia outro meio para ganhar a vida além do serviço temporário nos barcos pesqueiros estrangeiros. Quanto maiores os barcos, maior a quantidade de peixe roubado dos pescadores locais. Dizem que, há anos, antes de os piratas serem piratas e quanto muitos tentavam ganhar a vida como pescadores, muitas vezes os grandes barcos pesqueiros atiravam contra os botes locais, para impedi-los de pescar. Os piratas também protestam contra a quantidade imensa de barris com lixo tóxico que vêm dar à costa, ilegalmente lançados ao mar a alguns quilômetros da praia, por empresas estrangeiras que se aproveitam de não haver governo na Somália para impedir aquela prática ou para denunciar as empresas ao Tribunal Internacional. Organizações marítimas na África Oriental confirmaram esses relatos.


Boyah, conhecido em toda a Somália como pirata pioneiro, nasceu na cidade costeira de Eyl, acredita-se que em 1966, segundo documentos do Departamento de Estado dos EUA que recentemente congelou seus bens. Contou-me que ele e sua família foram deslocados, do litoral para o interior, como parte de um programa governamental de apoio a vítimas de enchentes. Deixou a escola aos oito anos e trabalhou como cozinheiro num barco pesqueiro. Tornou-se pescador. Sequestrou seu primeiro navio em 1993, um pesqueiro que entrara ilegalmente em águas da Somália.

Boyah conta que a pirataria começou na Somália quando pescadores como ele armaram-se e começaram a abordar traineiras clandestinas ilegais para exigir “uma multa”, no início, de alguns poucos milhares de dólares. Mas os pescadores rapidamente perceberam que recolher “multas” das traineiras podia ser muito mais lucrativo que pescar. Esforço que o governo de Puntland empreendeu em 1999, de contratar uma empresa britânica, Hart Security, para impedir que as traineiras e pesqueiros pescassem em águas da Somália, acabou por complicar ainda mais a situação, porque não conseguiu impedir a pesca ilegal e introduziu ainda maior quantidade de armas na região. Em meados dos anos 2000s, muitos pescadores amadores converteram-se em piratas profissionais e alguns deles enriqueceram inacreditavelmente, em pouco tempo. Graças a Boyah, sua cidade natal, Eyl, em pouco tempo converteu-se em nova capital planetária da pirataria.

Rapidamente, os piratas organizaram-se em grupos chamados “companhias”, que receberam nomes como “Marines da Somália”, “Guarda Costeira Central da Somália”, “Defensores das Águas Territoriais Somalianas” e, até, “Exército da Salvação do Oceano”. No passado, os piratas tentaram apresentar-se como guardiões do litoral da Somália, reivindicação que soa cada vez mais ridícula, posto que se aventuram milhas e milhas além dos limites territoriais, e já atacam navios em pontos mais próximos da Índia que da África. A verdade é que são, simplesmente, versão embarcada da absoluta ausência de qualquer lei ou ordem em que a Somália vive. Nos últimos vinte anos, no vácuo de qualquer autoridade central, personagens carismáticos que aprenderam a explorar as interconexões clânicas, o fácil acesso a armas e quantidades enormes de desempregados jovens e sem qualquer formação escolar, passaram a dominar a economia da Somália e aquela política envenenada. Controlam o contrabando de armas, o tráfico de drogas, importam alimento em pó para bebês, com prazo de validade vencido; são os mesmos que expropriaram prédios que foram propriedade do Estado e hoje alugam os quartos para famílias sem-teto.

Um dos maiores problemas da Somália é essa classe muito poderosa e profundamente enraizada, dos que lucram com a guerra. Alimentam-se há tanto tempo da anarquia, que se recusam a combatê-la. Combatem, sim, qualquer esforço para restabelecer qualquer tipo de governo, não importa que governo seja. “Impostos não são bem-vindos”, explicou um exportador de azeite de oliva, em Mogadishu, discorrendo sobre os motivos pelos quais estava comprando mísseis para guerrilheiros.[4]

Os piratas encontraram um meio para ancorar essa economia local criminosa, à economia global. De início, apenas posicionavam seus barcos no congestionado Golfo de Aden e esperavam. Um dos piratas que sequestrou o MV Faina, cargueiro ucraniano que transportava 33 tanques soviéticos de combate T-72, contou-me que, naquele dia, sua tripulação andava sem objetivo definido por um dos canais super congestionados, quando viram um barco grande, azul e branco, com cordas pendendo para fora da amurada. Hoje, porém, com a maior presença de barcos de guarda no Golfo de Aden, os piratas estão-se deslocando rapidamente cada vez mais para o sul e para o leste, usando naves-mães (em geral, traineiras roubadas) , como bases flutuantes de operação, para ampliar a área de ação. A região entre as ilhas Seychelles e a Tanzânia são hoje seu principal campo de caça.

Uma vez abordado o navio, os piratas dirigem-se imediatamente para a ponte, usam as armas para imobilizar a tripulação e, quase sempre, trancam todos nos dormitórios dos marinheiros. Só muito raramente os piratas somalianos ferem intencionalmente seus reféns. Na maioria, os piratas obedecem um rígido código de conduta que impõe multas aos pistoleiros que maltratem os reféns. Boyah disse que havia cópias impressas dessas regras, um, pode-se dizer, “Manual dos Piratas”. Os piratas parecem dar-se conta de que, se começarem a maltratar ou executar reféns, darão ao ocidente motivo perfeito para que ataquem suas bases em terra. Até agora, o mundo parece dar-se por satisfeito na posição de pagador desse caro jogo de gato e rato. Alguns, é verdade, começam a perder a paciência. Em abril passado, Nicolas Sarkozy ordenou que comandos franceses invadissem um veleiro sequestrado no qual permanecia uma família. Os comandos mataram dois piratas, capturaram três e libertaram o veleiro; mas também mataram o pai da família sequestrada.

Navios militares de várias bandeiras tem capturado incontáveis jovens somalianos a bordo de seus botes rápidos armados com armamento pesado e sem qualquer equipamento de pesca. Mas, na maioria dos casos, não há como formalizar qualquer acusação, e os barcos e tripulação acabam por ser libertos. Em praticamente todos os casos, os piratas são presos antes de praticar qualquer ação criminosa. E, depois que abordam e ocupam os navios, sempre é tarde demais para tentar prendê-los, porque já está protegidos pelos reféns. Nos termos das convenções internacionais, algumas delas com séculos de vigência, praticamente todo e qualquer país pode prender e julgar alguém que navegue em águas internacionais, suspeito de praticar pirataria. Vários navios ocidentais já entregaram mais de uma centena de suspeitos ao Quênia – país que, inicialmente, aceitara recebê-los para que fossem formalmente julgados. Mas o Quênia reclama os prometidos fundos financeiros para cobrir os custos de prisão e julgamento dos piratas, que jamais chegam; e a maioria dos casos que envolvem piratas não chegaram jamais a ser julgados.

Martin Murphy argumenta, convincentemente, que, apesar do ‘sucesso’ midiático, e do turbilhão que a expressão “piratas” desperta, a pirataria na Somália sempre foi negócio precário, rudimentar, sem qualquer tecnologia e, quase sempre, negócio selvagem, absolutamente sem regras. Chegou a haver rumores de executivos elegantes, em ternos e carros caros, em Nairobi, Dubai e até em Londres, que comandariam os negócios dos piratas somalianos, mas jamais consegui confirmar qualquer desses rumores. Também houve boatos de que os piratas estariam investindo fortunas no mercado imobiliário de Nairobi, que usariam equipamento para visão noturna e que, inclusive, estariam usando tintas especiais para pintar seus barcos, que os tornariam invisíveis à noite. Perguntei a outro capitão pirata, Mohamed Abdi, também conhecido como Af Weyne e “Bocão”, sobre a tal tinta invisível – e ele me olhou com ar feroz. Meu tradutor teve de repetir a pergunta. Duas vezes. Até que “Bocão” entendeu, e soltou uma gargalhada. “Bobagem, tudo bobagem”, disse. “Bocão” também riu alto, quando lhe disse que a ONU estava estudando meios para confiscar propriedades dos piratas em outros países. “Que propriedades?”, perguntou. (...)

Há pouca esperança, no futuro próximo, de que o governo de transição em Mogadishu consiga fortalecer-se o suficiente para derrotar os piratas. O governo pode, no máximo, tentar manter-se vivo. Os guerrilheiros islâmicos que controlam boa parte do território da Somália já consideraram a possibilidade de atacar as bases dos piratas, mas o dinheiro é necessário também para eles. Um grupo, Hizbul Islam, instalou algumas bases em Xarardheere e agora recebe um ‘imposto’ de $40.000 de cada resgate pago. Outro grupo guerrilheiro, mais poderoso, al-Shabab, fez um acordo com os piratas, pelo qual não interferem na operação pirata, em troca de 5% de todos os resgates recebidos. Parece estar começando aí o pior pesadelo para todo o Ocidente: os dois principais itens de exportação da Somália – pirataria e radicalismo islâmico – já estão unificando suas operações.

Sob pressão internacional crescente, e empurrados pelo que têm dito váriosSheikhs islâmicos, que a pirataria seria haram [pecado, pelos princípios do Islã], a Polícia de Puntland, em maio de 2010, prendeu Boyah. Até agora [o artigo foi escrito dia 14/9/2010, publicado um mês depois] ainda não foi formalmente acusado. Para muitos, ninguém formalizará qualquer acusação contra ele, que acabará por ter de ser libertado. Dentre outros fatores que pesam a favor de Boyah, ele e o presidente de Puntland pertenceriam a um mesmo sub-sub-clã. Na Somália, quase sempre, esse é o critério decisivo.
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NOTAS
[1] MURPHY, Martin N., Somalia: The New Barbary? Piracy and Islam in the Horn of Africa,
Columbia University Press, 179 pp., $26.50 (lançamento marcado para 23/11/2010).
[2] University of Chicago Press, 1967.
[3] HANLEY, Gerald, Warriors: Life and Death Among the Somalis, London: Eland, 228 pp., $32.95 (distribuído nos EUA por Dufour).
[4] Escrevi sobre isso em “In Somalia, Those Who Feed Off Anarchy Fuel It”, The New York Times, 25/4/2007 (em http://www.nytimes.com/2007/04/25/world/africa/25somalia.html).

Fonte: http://www.sediscute.com/2010/11/somalia-2010-os-piratas-estao-vencendo.html (09/11/2010)

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